NOSSA LUTA

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

MINHA FILHA, MEU AMOR, SABE?...,É que não se curam as dores da alma com sentenças judiciais.









O PSICÓTICO ALIENADOR, É TAMBÉM UM NARCISISTA...






Narciso é apaixonado por si, e sofre com isso.
Prisioneiro de sua imagem, incapaz de se possuir,
condenado sempre a se perder…
Porque só se podem possuir objetos,
e o eu não é um, apesar de mortal…
Não há eu a possuir aqui, e ei-lo que morre…
Desespero: Narciso só pode ser apreendido na morte.
André Comte-Sponville
O presente estudo teve como objetivo primordial aproximar-se do tema da
constituição psíquica dos genitores alienadores e, assim, buscar uma melhor compreensão
daquilo que se oculta na vida mental desses pais, capaz de transformá-los em abusadores
emocionais de seus próprios filhos, sem que se apercebam disso e sem que se disponham a
mudar de atitude, agindo como se estivessem dando o melhor de si, no exercício da função
parental. Com tal abordagem pretendi recolher dados que lançassem alguma luz sobre aquele
cipoal ao qual me referi na introdução desse texto.
Mesmo que tangenciando a personalidade do genitor alienador, em verdade, o
foco do meu esforço investigativo esteve, durante todo o tempo de gestação desta pesquisa,
nos menores vítimas da SAP. Isso porque os considero as reais vítimas desse jogo
manipulatório, representado pelo processo de desafeição ao qual são submetidos. Os filhos
são as vítimas inocentes dessa lamentável patologia familiar. Se os genitores sofrem — e
quanto a isso não restam dúvidas —, sabemos bem que tal sofrimento é fruto das escolhas
deles e que nós, seres humanos, sempre fomos e sempre seremos confrontados com a
realidade de colher aquilo que plantamos, sejam dores ou flores. Os adultos sofrem mesmo,
mas têm toda condição de buscar uma via madura para lidar com o padecimento que a vida
naturalmente nos impinge.
Mas as crianças, não. Não é justo que sofram por motivos banais, pela fraqueza
dos pais, pela irresponsabilidade deles. Não é justo que tenham sua infância consumida pelas
dores lancinantes da separação, do desamor, do conflito, do abandono. As crianças têm o
direito de construir suas personalidades em um ambiente pacífico e de acolhimento, e os pais
têm o dever de proporcionar isso a elas.
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Para quem lida de perto com o sofrimento de crianças que são colocadas no
epicentro de conflitos conjugais agudos, fica sempre a perplexidade traduzida na pergunta:
por que os pais não livram os filhos dessa dor? Afinal, as maiores dificuldades emocionais
advindas da separação não pertencem aos filhos, mas apenas aos cônjuges. Por que, então, os
pais não agem de forma compatível com tal realidade? Por que parecem querer levar os filhos,
junto com eles, para o fundo do poço?
A pergunta ressoa pelos corredores da Casa da Justiça, sem resposta.
É que não se curam as dores da alma com sentenças judiciais. Os cônjuges em
litígio, ao pretenderem que o Judiciário exerça a função psicanalítica do “pai”, daquele que
vai intervir para exercitar as interdições necessárias ao estabelecimento da ordem,
descobrirão, mais tarde, que o litígio judicial não lhes trará qualquer alívio e que do
Judiciário, do Ministério Público, dos advogados e demais personagens do processo, não se
pode esperar nenhuma salvação do espírito.
É inegável que os litígios de família têm um aspecto simbólico bastante relevante.
Mais do que materializar a existência de pretensões conflitantes, as demandas judiciais
exteriorizam a subjetividade de cada um, seus desejos inconscientes, seus valores éticos.
E aqui, vale um registro: a maior cegueira da nossa justiça está em sua
impossibilidade de indagar sobre a essência do homem que ela julga. Coubesse à justiça
questionar a consciência moral de seus litigantes e isso seria suficiente para lotar as cadeias. É
comum ver-se, nos processos judiciais e fora deles, pais e mães que afrontam a ética das
relações familiares, transgredindo deveres básicos inerentes ao exercício da autoridade
parental, desobedecendo as obrigações de proteção e de assistência dos filhos, descumprindo
o pacto silencioso que sustenta — ou deveria sustentar — os vínculos de família: a promessa
de solidariedade, afeto, respeito, cuidado, amparo.
Muito se diz sobre o amor incondicional dos pais, sobre a potência do amor
materno, mas onde dormita esse amor, incapaz de livrar o filho de um mal evitável? Estaria,
porventura, aprisionado na contenda judicial travada entre os cônjuges, ou, talvez, ofuscado
pelo narcisismo deles?
Como quer que seja, não é no processo judicial que o casal em ruptura vai
conseguir curar suas feridas emocionais, muito menos é ali que seus conflitos vão ser
pacificados, porque esses conflitos pertencem à interioridade dos cônjuges, cabendo apenas
aos implicados encontrar, cada qual, seu caminho de reconstrução, depois das perdas naturais
da separação. Esse casal conflituoso — completamente sem rumo, perdido nas lides judiciais
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e também em sua própria interioridade —, deita os filhos no limbo, desamparados, até que um
dia possa, novamente, ter olhos para vê-los.
Essa mecânica se torna ainda mais trágica quando um processo de SAP é
instalado, porque o filho é submetido a situações de estresse profundo, para o que ainda não
está preparado, padecendo de uma verdadeira tortura psicológica, em razão das manipulações
de que passa a ser vítima. Mais do que suportar as dores do afastamento físico de um de seus
genitores, o filho programado tem, ainda, que enfrentar o rompimento afetivo com um genitor
a quem ele quer bem, a quem ele ama e que, de repente, passa a figurar em sua vida como
sendo uma fraude, um engano, algo para ser marginalizado e esquecido.
E então, a pergunta se renova: por que os pais, além de não pouparem as crianças
dos males da separação, ainda as submetem a uma doutrinação cruel, dirigida a um objeto de
amor dos filhos? Por que negar ao filho o prazer de uma vida amorosamente experimentada
com ambos os pais? Por que negar ao filho a oportunidade de viver uma vida de amor, de
afeto, de amparo?
Hoje, ao cabo desse estudo, penso que a insensatez que caracteriza o genitor SAP
pode se prender à existência de um funcionamento psíquico bastante primitivo, fragmentário,
de traços narcísicos. Tal interpretação, em todo caso, não constitui a única explicação para o
proceder do genitor alienador, até porque muitas variáveis precisam ser examinadas e muitas
circunstâncias levadas em conta, antes de qualquer afirmação peremptória no que diz respeito
à natureza e à mecânica das relações existenciais.
Mas resta inegável a estreita aproximação entre o narcisista e o alienador. Vale
dizer que ambos experimentam sentimentos de perda da própria identidade, sentindo-se
habitados por um vazio aleijante, o que os coloca na condição de seres padecedores de sua
própria miséria, sofrendo muito com isso e, também, muito fazendo sofrer os que com eles
convivem. Como se sabe, a falha sobre a qual se erige a estruturação psíquica dos narcísicos
constitui-se de uma ausência muito profunda, capaz até mesmo de ser perpetuada nas
gerações futuras.
Cassandra Pereira França lembra que
será justamente a fragilidade da estrutura psíquica do narcísico o ponto que marcará
o seu destino amoroso: a solidão, pois o outro pode existir sob condição de se
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conformar com o papel de Eco no registro do desejo, e nunca para ser amado. Ou
seja, não haverá para eles a possibilidade de se revitalizarem no amor.148
Os narcísicos são pessoas que não foram adequadamente amadas e que por isso
amam o que lhes resta: elas mesmas. São sujeitos perdidos nos labirintos de suas
interioridades fragilizadas pelo fracasso ambiental do qual possivelmente foram vítimas.
Assim como os narcísicos, o alienador não estabelece uma relação satisfatória
com o outro, não vê, não entende, não atende, não divide, não doa.
Ante tais particularidades, é que muito se tem dito sobre a falta de acesso
psicanalítico aos pacientes narcísicos pela tendência que eles têm em ver, na figura do
analista, uma imagem especular deles próprios, ou seja, o tratamento desses sujeitos tem sido
considerado difícil em razão do tipo de transferência que eles estabelecem, diferente daquela
verificada no tratamento das neuroses clássicas.
Mas os narcísicos são indivíduos que carecem de amor e que, assim, apenas
através do amor poderão ser compreendidos. E é justamente por isso que o saber psicanalítico
tem uma grande contribuição a dar nesses casos. Afinal, como nos ensinou Freud, “a
psicanálise é, em essência, uma cura pelo amor”.
Assim é que a clínica psicanalítica expandiu-se, de modo a acolher as
manifestações subjetivas próprias de uma nova ordem social, adaptando-se, renovando-se e
ampliando o enquadre psicanalítico clássico. Essa reengenharia é o que anima e faz crescer a
certeza de uma psicanálise para qualquer tempo, porque não há humanidade sem sofrimento e
onde há sofrimento, há espaço para a escuta psicanalítica.
Na multiplicidade dos saberes científicos, em especial aqueles que derivam de um
direito de família mais próximo da psicanálise, mais perto, pois, da natureza humana, está
ancorada a maior esperança das vítimas da síndrome de alienação parental, ainda muito
prejudicadas pela falta de abordagem adequada do assunto nas vias judiciais, pela dificuldade
que representa o enfrentamento do tema — quer nos consultórios, quer nos tribunais—, pela
negação do fenômeno, ou pelo desconhecimento dele, tout court.
Mas nós, que convivemos com os filhos do divórcio, sabemos o quanto a SAP é
real e como ela é perversa e insidiosa, transformando-se, muitas vezes, numa doença
incurável, capaz de desfigurar o psiquismo daqueles a quem acomete.
148 FRANÇA, p. 228
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Não pode o direito desviar os olhos dessa realidade, ao fundamento de que a SAP
é questão que deve ser tratada nos consultórios. Tampouco pode a psicanálise negar escuta a
esses sujeitos padecentes, porque pacientes de difícil acesso.
Nós, operadores do direito e profissionais da saúde mental, não podemos nos
deixar ser engolidos por vazios retóricos e por comodismos covardes, enquanto há crianças
em sofrimento, aguardando que alguém no mundo as proteja.
Compreender o fenômeno SAP, saber como preveni-lo, como identificá-lo e como
tratá-lo é mais do que um desafio. É uma missão indeclinável, que precisa ser enfrentada com
urgência e com coragem, por todos aqueles que realmente se importam com a saúde psíquica
das gerações futuras.